ah, nicoly
querida nicoly
a que conduz o povo a vitória
"vitoriosa"
mas que não se sente merecedora da própria glória
a menina que ri demais
se derrama no papel
odeia o ambiente, mas até que fica feliz indo pra escola
pensa em, algum dia, fugir pra outro lugar e escapar de tudo
mas sabe que os seus problemas não estão na rua, na sala de aula e nem onde ela mora
estão na costela esquerda
na memória emocional
uma partezinha que ninguém encosta
reclama de áudios longos de mais
cartas quilométricas
bilhetinhos espontâneos
sem motivo
sem hora
mas todos sabemos que tu amas tudo isso
que tua dor não tá no excesso,
tá na falta
e que o que tu mais detesta mesmo
são mensagens rasas
não ser lembrada
não receber nenhuma carta
ah, nicoly
a nicoly que tinha mania de olhar só pr'um lado antes de atravessar a rua
como se o perigo só viesse do lado contrário
como se o mundo fosse unilateral
como se todo caos que viesse deixasse avisado
a que matava o tédio na aula de matemática tentando escrever o alfabeto com a mão esquerda
que achava qualidades em tudo e todos,
menos nela mesma
a mesma nicoly que escrevia o nome em códigos em agendas velhas
inventava palavras pra explicar sentimentos que nem ela mesma entendia
sentimentos tipo tristeza, emoção, covardia
mas aquela nicoly ainda era pequena demais pra entender a profundidade que cada uma dessas palavras compreendia
eu posso te escutar falando nesse exato momento:
"a vida é tão curta pra não fazer o que pensa"
mas, no final, você se arrepende de não seguir o que fala à risca
chorava e chorava
vivia repetindo a mesma frase
"quem não arrisca, não petisca"
mas você nunca petiscava
era cheia de opiniões
coisa não dita que tava entalada
textos, adesivos, pulseiras
tudo junto numa caixa amarrotada
e no fundo da caixa
todos os teus sentimentos,
achismos e histórias não contadas
você amassava folhas que estavam lotadas
cheias de desenhos, palavras
mas nunca jogava fora
como se rasgar aquelas folhas fosse rasgar uma parte do teu coração
tu escreves pra tentar alcançar o céu
o sol
o mar
acho que até se alcançar
tens essa mania de se esconder sob nossos olhos
se esgueirar
mas tudo que mais queres é que alguém vá te procurar
ninguém te ensinou à desapegar
nicoly, tua memória é tão distante quanto a minha?
ou ela tá tão próxima de ti que chega bem pertinho do teu ouvido pra sussurrar
te lembrar
lembrar de cada medo teu, cada jeitinho só teu de amar que nem mesmo tu chega a recordar
só gostas de lembrar o que te amarga, te machuca, te faz afundar
sopra no teu ouvido aquele temor de te resumirem e te explicarem com as besteiras que tentas deixar pra trás
"aquela é a nicoly, a menina que não se sentia capaz"
tu deitavas às 22 horas
mas só dormia quando as ideias de devaneios acabavam
talvez por isso demorasse tanto
elas nunca terminaram
você só sonhava e sonhava
e no final tantos sonhos te cansavam
nicoly era amarga e doce ao mesmo tempo
uma das melhores coisas que já a disseram
"você é forte", "flor de tangerina em formato de menina"
ela via suas fotos antigas
sentia saudades de um tempo que há tempos já não existia
tentava se reconhecer nelas
mas ali ainda não era ela
ela não se acharia
nicoly não sentia fome
queria comer, mas não conseguia
a fome pra ela era uma desconhecida que há muito tempo não aparecia
a cabeça estava cheia, mas a barriga sempre vazia
tirava sempre notas boas
era uma menina inteligente
esperta pra muita coisa,
não só academicamente
sabia de assuntos globais,
tipo cultura pop e política
só não era muito paciente
mesmo com tanta inteligência
com um armazenamento no cérebro
nicoly não era considerada a melhor
nicoly não tinha reconhecimento
mesmo gabaritando
mesmo participando
mesmo sendo líder de sala
mesmo se esforçando
sempre muito comunicativa
a menina falava tanto
que parecia que nunca mais pararia
isso era desvantagem na escola,
mas uma vantagem na vida
ela queria ser advogada
especificamente criminalista
admiradora de casos criminais
sabia técnicas para matar sem nunca ser descoberta
mas ela nunca precisou
porque quem acabou morrendo aos poucos
foi sua arte, só ela
ainda viva
realmente, o que a arte não faz pela artista
ela sobrevivia
e era à isso que ela resumia a vida
música, dança, atuação, escrita
ela não é triste
nem perto disso
seus pais fazem de tudo por ela,
ela tem alguns amigos
mas sabemos que, pra adolescente, tudo parece mais difícil
ela gosta de pensar que é esboço
imperfeito, mas especial demais pra apagar
mesmo com os erros
mesmo com as rasuras
mesmo com traço tremido
ô, nicoly
tu ainda lê o que não foi escrito?
escuta o que não foi dito?
sente a emoção nos olhos de alguém como nunca sentiram nos teus?
você ainda sente saudade?
tua vista ainda escurece ao se levantar e te deixa cega?
isso ainda te faz pensar que teu corpo falha contigo
como se ele dissesse o que tua boca não é capaz de falar?
ô, ah, nicoly
lembro-me que não és mulher
és menina
também um conceito; e um daqueles bem incompreendidos
você é tão criativa
que sente inveja de quem chama "gabriela", "marina", "rita"
tudo por achar que o nome encaixa em poesia
diz que são "rimáveis", "artísticos"
que são perfeitos pra letras de canções,
roteiros de filmes, livros
ou até mesmo nessas cartas
que você envia pra alguém na esperança da pessoa responder com a mesma profundidade
ou, no seu caso, com suas frases de efeito de quem viu de tudo, mas não faz questão de explicar nada
"tudo é fase, tudo passa"
como se esses nomes fossem versos fáceis de rimar
e o teu fosse difícil demais pra canção
tu só quer ser compreendida
parar de ser conceito,
quer se preparar pra ser mulher algum dia
e poder ser finalmente menina
nicoly confiava demais
todo mundo dizia
aí se moldou, se fechou, parou de correr atrás
escutava o que falavam dela e, mesmo tentando ignorar, seu cérebro absorvia
você viu de tudo mesmo ou só faz de conta?
às vezes acho que finge tão bem que,
mesmo que não seja verdade,
disfarça bem de mais da conta e eu chego à pensar que encaixa
pode ser até que não encaixe, mas eu acredito e você disfarça
nicoly, de tanto pensar, o açúcar de tua alma amargou
teu café quente esfriou
as lágrimas adoçaram
tuas palavras salgaram
às vezes, enxergava o mundo como num sonho desfocado
ela não usava seus óculos
se achava mais esquisita com eles
como se corrigir a visão
fosse revelar defeitos mais nítidos no espelho
como se ver demais fosse perigoso
ela preferia o mundo levemente embaçado,
com as bordas macias,
onde tudo parecia menos urgente,
menos afiado
astigmatismo
palavra difícil pra dizer
tão difícil quanto reconhecer
que nem todo mundo nasceu pra ser o que quer
mas sim só pra querer
mas se bem que todo mundo é alguma coisa
em si mesma, nicoly só enxergava borrões
sabia elogiar com poesia
mas quando ouvia um, desviava o olhar
como quem não consegue encarar o sol
e só de pensar que poderia ser mentira,
sua barriga doía
os bilhetes dentro dos livros eram como partes dela espalhadas por estantes
eles eram como um grito
como quem diz "eu existo"
como alguém que não quer ser definida
pelas notas de uma prova
pelo cabelo frizzado
pelo seu pensamento impossível de ser previsto
nicoly, em tudo tu vês significado
nas horas iguais
no versículo da bíblia que tá marcado
tudo era sinal,
tudo era poesia disfarçada de acaso
o tal do "quem não arrisca, não petisca"
mas, de verdade, tu nunca petiscava
tu mesma deixava tudo pra depois
tudo pra "um dia"
tudo pra "quando estiver melhor"
mas o melhor nunca vinha
e quando tu via, já era domingo de novo
e tu não escreveu
não disse
se confiava no teu jeito de corvo
inteligente, bom de memória
mas também não tinha certeza de nada
deixava tuas penas por todo canto
como se alguém fosse pegá-las
molhá-las em tinta e escrever uma dessas cartas
mas me conta:
você lembra da primeira vez que te chamaram de “sensível”
como se fosse ofensa?
como se sentir demais fosse perder no jogo da vida?
você ainda esconde bilhetes dentro de livros que ninguém mais lê?
ou começou a rasgar também os bilhetes
com medo de que alguém achasse e te lesse antes de estar pronta pra ser lida?
lembra daquele inverno que não fazia frio,
mas você ainda tremia?
na época em que escrevia no caderno de capa colorida com uma carinha feliz no meio
que dizia que o mundo era bonito demais pra ser só isso aqui?
ou do dia em que acendeu as luzinhas no quarto
pra ver se tudo ao redor também acendia junto?
lembra do leite de rosas que tua avó usava,
do barulho da chuva batendo no telhado da escola num dia de gravação pra projeto,
do medo de crescer que você fingia que não sentia?
e mesmo assim,
tu seguia empilhando certezas em cima do peito
como quem tenta construir abrigo
com a areia dos próprios medos
ah, nicoly
você nunca gostou de brincos pesados
mas vivia carregando nomes, promessas, expectativas
como se fosse tua obrigação segurar o mundo
e quando ele escorregava
você pedia desculpa
e eu ainda te escuto dizer, baixinho, como se não quisesse ser ouvida
e por mais que o mundo não saiba,
tu ainda tens essa luz miudinha
só se esconde
de vez em quando
pra não ser esmagada
mas tá aí
intacta
"cérebro demais, cabeça demais", tua mãe dizia
nessa hora tudo que tu pensavas era "que cérebro é esse que não se faz capaz de pensar num final pra uma historinha?"
e aí eu te pergunto:
"nicoly, que historinha?
como dizes que não és capaz de terminá-la se cria contos da mesma forma que uma criança pequena pinta fora da linha?"
logo então me respondia
que não era história de livro nem poesia
mas sim a tua própria vida
pontuou que imaginava mil e um desfechos pra ela, mas parecia que nenhum realmente coincidia
queria estudar, se formar, ter uma boa vida
mas não sabia se conseguiria
pobre escritora, pobre artista, pobre conceito,
pobre menina
quem imaginaria?
uma garota que aparentava ser tão decidida lá fora
quando entrava no quarto
tinha tantas dúvidas sobre o que iria acontecer na própria vida?
nicoly lia, lia e lia
sempre que falar mal de um livro que ela gosta, ela rapidamente contraria
"eu sei que, se você lesse, gostaria"
você lê, logo confirma
ela olha pra ti com aquele sorriso
"eu sabia"
agora me diga:
como pode uma menina tão grande em estatura e alma e tão rica de vida saber dizer tudo sobre tudo, mas não ter certeza de pra onde vai quando caminha?
e ainda assim, continua indo,
como quem carrega o sol no bolso,
os pés no escuro
e o coração preso por uma linha.
Cara Nicoly, seu texto me tocou profundamente, obrigada por compartilhar suas dores em forma de poesia. Escreva palavras com significados que me lembram você.
N- Nafshi Ragish - do hebraico - (Alma que sente; alma sensível)
I- Inefável - origem do latim - (Que não se pode nomear ou descrever em razão de sua natureza, força, beleza; indizível, indescritível.)
C- Coraggio - italiano - (Coragem)
O- Oubaitori - japonês - (A beleza de florescer no próprio tempo, sem se comparar a ninguém. Cada pessoa é única, como as flores da ameixeira, do pessegueiro, da cerejeira e do damasco, essas árvores florescem em períodos diferentes e com belezas distintas)
L- Logophile - grego - (Alguém que ama palavras.)
Y- Yūgen - japonês - (Uma beleza profunda, inexplicável, que toca a alma, como olhar o céu noturno ou ouvir uma melodia triste e bonita.)
Sei que letra L já foi, porém, não poderia deixar de escrever essa frase: Luceat lux vestra - latim - (Deixe sua luz brilhar.)
E sei que você é: Alis Propriis Volat - latim - (Ela voa com as próprias asas.)